Este blogue é uma extensão de Entre as brumas da memória.

terça-feira, 25 de junho de 2013

E se discutíssemos um novo partido à esquerda? (Público, 25/6/2013)


Por Jo­sé Ví­tor Ma­lhei­ros

Um dos muitos temas tabu na esquerda portuguesa, que tem vindo a ser colocado na ordem do dia por diversas pessoas, entre as quais Rui Tavares, o eurodeputado independente eleito nas listas do Bloco de Esquerda mas que hoje integra o grupo d’Os Verdes no Parlamento Europeu, é a eventual criação de um novo partido à esquerda.

Uma entrevista dada ontem ao jornal i, intitulada “Eurodeputado Rui Tavares defende a criação de novo partido à esquerda”, veio reacender o debate. Deixemos de lado o facto de o eurodeputado em momento nenhum da entrevista defender realmente a criação de um novo partido — Rui Tavares diz apenas que, se a “melhor ferramenta para que a sociedade portuguesa faça mexer as placas tectónicas da nossa política (...) for um partido, não devemos ter vergonha disso” — e tentemos discutir a coisa em si.

O eventual aparecimento de um partido à esquerda representa, por um lado, um concorrente para os actuais partidos de esquerda com representação parlamentar — PS, BE e PCP — que ameaça disputar um universo eleitoral cada vez mais escasso. Ainda que esse eventual partido nasça de segmentos da esquerda (independente ou partidária) que têm defendido a união da esquerda como forma de combater mais eficazmente a direita neoliberal e ainda que essa atitude se traduza no seu programa, este partido deverá assim enfrentar uma barragem de acusações de divisionismo da esquerda e de benefício objectivo da direita.

As acusações não terão nada de original, mas vale a pena discutir os seus pressupostos. Essa crítica parte da crença de que existe uma reserva de votos de esquerda, relativamente estável, que se divide, com maior ou menor convicção, pelos partidos actuais, e que as abstenções, votos nulos e brancos (44% nas últimas eleições) representam, por uma razão ou por outra, cidadãos perdidos para a política. Existe a convicção de que os abstencionistas são fundamentalmente cidadãos conservadores que não sentem uma urgente necessidade de mudar e, quando a sentem, não a exprimem através de votos à esquerda.

Considerando as eleições como este jogo de soma nula, é evidente que o surgimento de um novo partido pode representar um risco de vida para os incumbentes e a sua reacção pode prever-se violenta. Só que há muitas razões para pensar que as eleições não têm de ser um jogo de soma nula.

A multiplicação de movimentos de cidadãos, associações políticas e grupos de activistas mais ou menos orgânicos é um claro sinal (como a própria abstenção) de que uma parte significativa dos eleitores não se sente representada na prática política dos actuais partidos (como tem sido amplamente estudado por investigadores como André Freire e Pedro Magalhães).

Sintomaticamente, também, a esmagadora maioria das organizações surgidas nos últimos anos está claramente situada à esquerda — no que podemos definir como a área antiausteritária — e os independentes ocupam nelas um espaço significativo.

O que estes movimentos sugerem, na sua diversidade, é que há um povo de esquerda que procura plataformas onde possa agir e que está disponível para as construir de raiz, à margem das organizações políticas actuais e sob formas não tradicionais.

E, ao contrário do que sucedia há uns anos, quando os abstencionistas eram tendencialmente conservadores ou “apolíticos”, existem muitos destes cidadãos que se recusam a participar no jogo eleitoral por não verem nele uma real alternativa mas que são cidadãos conscientes e activistas que se situam à esquerda do espectro político.

O que isto significa é que existe uma reserva de votos à esquerda que nenhum partido está a atrair mas que pertencem a cidadãos que querem inscrever-se no debate político e alterar o statu quo.

A democracia exige organizações capazes de representar os anseios dos cidadãos e de reflectir as suas opções ideológicas. A crise da democracia que vivemos não tem apenas que ver com um errado “funcionamento” dos partidos (compadrio, opacidade, corrupção, falta de diálogo) mas tem que ver também com a sua pobreza ideológica. O espectro ideológico representado no Parlamento é caricaturalmente estreito quando comparado com a realidade social.

Há, pois, votos de esquerda (ou, simplesmente, votos pró-democracia) a conquistar para a política, que um novo partido poderia roubar à abstenção. Mas há também necessidade de enriquecer as opções políticas colocadas à consideração dos cidadãos e isso pode, naturalmente, traduzir-se por uma transferência de votos entre partidos. Mas um novo partido de esquerda não roubará aos actuais partidos de esquerda senão os votos que já não lhes pertencem e que apenas aí estão estacionados por falta de alternativas mais aliciantes. Não há nenhuma razão válida para manter uma oferta política tão estreita como a actual (em número e género de escolhas) quando existe sede de coisas novas. A diversidade das esquerdas é um valor e uma necessidade que nenhuma “economia de escala” eleitoral deve esquecer.


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domingo, 9 de junho de 2013

Público, 8/6/2013, p.48


José Pacheco Pereira – “Eles” (os funcionários públicos) são uma parte de “nós”

O que se passa na actual ofensiva do Governo contra a função pública está muito para além da condição de se ser “funcionário público”. O discurso do Governo — mais uma vez um discurso de divisão entre os portugueses, a que chamei e chamo “guerra civil” — pretende legitimar as suas acções como tendo a ver com aquilo que apresenta como “privilégios” dessa condição profissional. Os corolários são sempre os mesmos; está-se a atacar privilegiados, cujos privilégios são pagos pelos dinheiros dos contribuintes, em nome da “equidade”. Se temos impostos altos é porque esta gente “do Estado” tem o emprego garantido, ganha mais do que os trabalhadores do sector privado, tem maiores reformas. Tudo em parte verdade, tudo em absoluto mentira.

Este discurso colhe, porque as sementes da cizânia pegam sempre em momentos de empobrecimento, em que a mais fácil das cegueiras é olhar para o lado e ver que o vizinho tem mais uns tostões do que eu e ficar fixado nessa socialização da inveja entre os de baixo, muito próximos em condição e dificuldades, em vez de olhar para outro lado, para o lado de onde vem a minha miséria e a do meu vizinho. Para o lado de cima.

O que se passa com a função pública é relevante para todos nós, como método, como sinal, e, infelizmente, como imoralidade social, rompendo um contrato social que é suposto ser o tecido da nossa sociedade em democracia, em que existem diferenças e diferenciações aceitáveis e outras inaceitáveis. É porque o Governo quer esconder as inaceitáveis que assume agora uma espécie de igualitarismo para os imbecis, proclamando-se de uma rasoira igualitária que serve para violar contratos e garantias, direitos e condições, em nome de um “dinheiro” que não há nestes casos e que parece haver sempre nos outros. Alguém disse esta semana, e bem, que nunca ouviu o Governo responder que “não havia dinheiro” para as PPP, nem para os contratos swap, nem para a banca, só para os trabalhadores e para os reformados.

É por isso que o que o Governo está a fazer aos funcionários públicos tem um significado social muito mais vasto do que as peculiaridades do seu estatuto social e profissional. E o invólucro de uma pseudo-“reforma do Estado” é apenas a expressão orwelliana para mais um corte cego nos serviços públicos, sem nexo, sem consistência, nem sustentação, sem sequer corresponder a qualquer poupança estrutural, porque os custos das coisas mal feitas são muito maiores do que a poupança orçamental obtida a curto prazo.

Um dos aspectos mais inaceitáveis deste processo é o grau de dolo e fraude em que ele é feito. Repito-me, mas este é um dos aspectos mais repulsivos da actual governação. Todos os governantes juraram várias vezes, há dois anos, e há dois meses, que nunca haveria despedimentos na função pública, nunca haveria “mobilidade especial” para os professores, e que apenas quem quiser sair teria abertas as portas a “rescisões amigáveis”. O que ofende mais a consciência comum é que as mesmas pessoas que usaram o “nunca”, várias vezes e em contextos que não permitiam a ambiguidade, estão hoje na vanguarda de piruetas verbais mais obscenas para se desdizerem, parecendo aliás muito pouco preocupados com o valor da sua palavra.

Quando se justificaram, no passado próximo, muitas medidas de cortes salariais na função pública com o argumento de que podiam ser mais gravosas para os funcionários públicos, visto que eles tinham “a garantia do emprego”, o que se estava a fazer era mentir a todos, como método de actuação. O mesmo dolo foi a “mobilidade especial” e agora a “requalificação” que não são mais do que classificações enganosas em burocratês para os despedimentos. O despedimento de funcionários públicos estava inscrito no código genético desta governação desde o primeiro dia. Escrevi-o na altura com absoluta certeza de que iria ser assim. E foi.

Tudo isto nos diz respeito, funcionários ou trabalhadores do sector privado, porque ninguém tenha dúvidas de que se o Governo pudesse fazer a todos os trabalhadores portugueses o mesmo que está a fazer aos funcionários públicos, fá-lo-ia sem hesitar. Se, por despacho ou lei ordinária, em muitos casos sem sequer ir à Assembleia da República, fosse possível aumentar o horário de trabalho, permitir despedimentos discricionários por decisão unilateral do patrão ou do capataz, individuais e colectivos, sem qualquer enquadramento legal que proteja a parte mais fraca, nem simulacros de leis laborais seriam precisas.

E tudo isto nos diz respeito, porque é o medo o lubrificante do discurso de guerra civil do Governo. Sim, o medo das pessoas normais, que sabem que ninguém as defende, que não confiam na força dos sindicatos, que sabem que o silêncio cúmplice de Seguro não destoa dos actos de Passos Coelho, que sabem que se escorregarem ainda mais no plano inclinado da pobreza, cujo grande salto é o despedimento, terão uma vida infernal, difícil e envergonhada. E por isso hesitam, temem, retraem-se, têm a ilusão de que podem passar despercebidos ao olhar do chefe que vai escolher quem vai para a “mobilidade especial”, ou para a “requalificação”, ou seja, quem vai ser despedido.

A razão pela qual o povo português parece ser mais “paciente” resulta muito simplesmente de que muitos têm medo de perder ainda mais do que o que já estão a perder. E como o discurso da divisão deixa cada um sozinho na sua fábrica, na sua escola, na sua repartição, o medo ainda é eficaz. Mas o medo é destrutivo da sociedade e da democracia, e dá saída apenas para o desespero, o momento em que as pessoas percebem que já não há mais a perder. E nessa altura o seu desespero não se verá em manifestações da CGTP ou dos "indignados".

Uma das razões por que prefiro mesmo o desconhecido e o arriscado á situação presente, como sejam eleições antecipadas sem grandes expectativas, é que prefiro um tumulto que abra o espaço político a uma situação nova, à continuidade de uma governação que é uma forma muito pior de tumulto, é a destruição de um país em que a condição de se ser português não significa nada, porque já não existem laços comunitários em que nos reconheçamos.

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Soares apelou às esquerdas, mas com idêntico impulso crítico podia-se apelar às direitas, no mesmo sentido de acção contra este Governo. Quem tiver um mínimo senso patriótico e nacional, mesmo aceitando-se o lugar-comum de que é à direita que esse sentimento de patriotismo é mais agudo, não pode deixar de se preocupar e muito com a obra de destruição de Portugal e do tecido que uniu até hoje os portugueses.

O enorme falhanço da esquerda e da direita está em querer traduzir numa linguagem estereotipada e sectária uma realidade de devastação que em muito ultrapassa o discurso político tradicional. Os partidos políticos que assentam em termos programáticos numa ideia de cidadania (como o PS) ou de “pessoa humana” (como o PSD e o CDS) estariam à partida vocacionados para, pelo menos, compreender o que se está a passar e travar esta forma miserável de luta de uns contra os outros que não ousa dizer o nome, mas que é muito parecida com a “luta de classes”. Mas cada um ao seu modo, nas suas lideranças, traiu os seus programas e, por isso, está a estragar Portugal e a democracia.

Não é irrelevante o que se está a passar, para quem seja “justo”, para quem não seja indiferente ao tónus moral e cívico de uma sociedade, com todos os piores instintos a ser despertados e alimentados, para garantir um terreno favorável a um projecto de engenharia política que hoje está em decadência, mas que envenena a terra em que está a apodrecer. Se há um princípio cívico de moralidade — e é um cínico e um relutante defensor de argumentos morais em política que escreve isto — o que está a acontecer aos funcionários públicos deveria fazer soar todos os sinais de alarme.

Face a esta situação, precisávamos de gente como Thomas Paine que nos ensinasse que a “moderação no Bem” não é uma coisa boa. E que se a “moderação no temperamento é sempre uma virtude, a moderação nos princípios é sempre um vício”. Há momentos em que é precisa esta intransigência.
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